Informação policial e Bombeiro Militar

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Boletins de ocorrência lavrados pela PM: quem ganha com isso?


Caso seja instituído o sistema, os oficiais serão “transformados” em “delegados de polícia”, sem a realização de concurso público, mantendo-se o militarismo (trabalho no período vespertino, poder de mando na forma do arcaico regime disciplinar militar, motorista, aposentadoria em cargo imediatamente superior, etc.)

A polêmica atual envolvendo a "eterna" briga entre as polícias Civil e Militar do Estado de Santa Catarina é sobre a implementação do Sistema de Atendimento e Despacho de Emergência (SADE) pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. A pasta e a Polícia Militar afirmam que a inovação vem em benefício à população e "apenas" vai informatizar e agilizar os registros de atendimento feito pela PM no local do crime para que a Polícia Civil, caso queira, possa fazer uso dos dados colhidos.

O discurso é simplista e cheio de eufemismos, pois por trás disso tudo, segundo a ADEPOL/SC, a Polícia Militar estará usurpando a função de polícia judiciária, tal como já o faz com a lavratura do Termo Circunstanciado, eis que na prática vai passar a registrar os famigerados BOs.

Já tinhamos manifestado acerca da inconstitucionalidade da lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pela polícia de segurança (PM) em Santa Catarina (um dos pouquíssimos estados da federação que possuem tal atribuição [01]) e da conveniência política (ou da "politicagem") por parte dos governantes em atribuir tal função aos milicianos [02].

Como dito naquela oportunidade, é inegável que por trás de toda peleja por atribuições por um órgao estatal (seja ele quem for) está aquilo que Ferdinand Lassale conceituou de "disputa por fatores reais de poder" [03]. E o objetivo disso tudo é "afirmar a sua importância" perante a sociedade para no fundo dar subsídios para que seus integrantes pleiteiem por maiores salários ou equiparação [04] com outra carreira junto ao governo (visão puramente classista).

Tenho que o principal problema envolvendo as duas instituições é justamente a invasão das atribuições de uma polícia na outra. Se cada uma fizesse a sua parte, os problemas entre as duas instituições com certeza, se não acabasse, diminuiria muito. E falta um governador ou secretário de Seg. Pública que tenha pulso firme e coloque cada polícia em seu devido lugar.

Antes de adentrar no mérito da questão, é importante esclarecer, ou melhor, reafirmar as atribuições constitucionais de cada polícia.

Segundo a Constituição Federal (art. 144, §5º), cabe à Polícia Militar realizar o policiamento ostensivo e garantir a ordem pública. Ela atua de forma preventiva, pois sua função visa evitar a prática de um crime crime ou reprimi-lo imediatamente a fim de restabelecer a paz e a ordem pública eventualmente violada. O uso da farda dá o caráter ostensivo, ou seja, tem o nítido objetivo de comunicar, de dar publicidade ao cidadão de que que ali está o braço forte do Estado. Flagrado alguém pelo cometimento de um crime, deve o PM conduzir o cidadão à delegacia (e jamais a um quartel) a fim de que a autoridade policial analise a situação e, se for o caso, o encaminhe ao presídio, onde permanecerá à disposição do poder judiciário.

Praticado o crime sem que o autor esteja numa situação de flagrante, cabe à polícia judiciária, Polícia Federal no âmbito da União e Polícias Civis nos estados, realizar a investigação visando apurar a autoria (quem fez) e a materialidade (colher a provas) de um crime (art. 4º, Código de Processo Penal, e 144, §§ 1º e 4º, CF) para que o criminoso seja acusado pelo titular da ação penal (art. 129, I, CF) e julgado por um juiz competente (5º, LIII, CF). A polícia judiciária atua após o cometimento do crime.

Somente de forma excepcional é que a Polícia Militar atua na função de polícia judiciária, vale dizer, somente em casos de crimes militares, cometidos POR MILITARES no exercício da função ou em razão dela (art. 144, §4º, in fine, CF) [05] que um oficial irá conduzir a investigação (na qualidade de encarregado) por meio de um Inquérito Policial Militar. Portanto, os famigerados "P2" são policiais militares (iguais aos outros) que tem a função única e exclusiva de investigar os próprios militares, jamais o cidadão civil.

A desobediência a esse preceito constitucional já custou ao Brasil uma condenaçãopela da Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH, da OEA, que dentre outras sanções, fixou a indenização de U$ 20.000,00 (vinte mil dólares) por danos morais e U$ 10.000,00 (dez mil dólares) a título de custas e gastos para cada vítima do caso Escher [06]. Isso porque um PM usurpou as atribuições da polícia judiciária e investigou, ao arreio da legislação brasileira, um crime civil envolvendo integrantes do MST no estado do Paraná/PR [07]. O dinheiro que pagou a conta dessa indenização todos nós já sabemos de quem foi...

A "instituição" da realização de BOs pela polícia militar em Santa Catarina foi a gota d’água para alguns delegados que há tempo reclamam da usurpação de função por parte dos oficiais da Polícia Militar (os praças nada tem a ver com isso até porque nem gostam de lavrar TC ou BO, já preferem a parte operacional). É que para alguns delegados, aos poucos os oficiais vêm "comendo pelas beiradas" para no fundo conseguir o que desejam: implementar o Ciclo Completo de Polícia.

Caso seja instituído o supracitado sistema, sem rodeios ou meias palavras, os oficiais serão "transformados" em "delegados de polícia", sem a realização de concurso público, mantendo-se o militarismo (trabalho no período vespertino, poder de mando na forma do arcaico regime disciplinar militar, motorista, aposentadoria em cargo imediatamente superior, etc.), pois passariam a exercer a mesma função que os delegados. Seriam então duas polícias realizando a mesma função.

Ocorre que para que isso seja feito de forma correta é necessária alteração na Constituição Federal e qualquer ato normativo que assim disponha é flagrantemente é inconstitucional.

Com a implementação do BO pela PM, como ela não tem atribuição legal para investigar crime civil e, portanto, não poderá instaurar o inquérito policial, a notícia do crime deverá ser encaminhada para a delegacia competente. E isso vai demorar dias para chegar à polícia civil, pois delegado nenhum vai ficar consultando o sistema para saber quais os crimes foram registrados pela PM, já que já têm muitos registrados em sua delegacia para analisar. O cidadão vai ser orientado pelo PM a não ir à delegacia, pois o registro já foi feito no local ou no "capô da viatura".

A hipótese ventilada é que os oficiais irão despachar os boletins de ocorrência (assim como fazem os delegados "de direito") para as delegacias "determinando" (pasmem) que a autoridade policial (delegado de polícia) instaure um inquérito para apurar o caso, eis "que presentes a autoria e a materialidade do crime tal". Isso soou como um absurdo e é rechaçado veementemente pela classe dos delegados.

O problema está posto e alheio a tudo isso está o Ministério Público e o Poder Judiciário, os quais consultados ou provocados afirmam que o problema deve ser resolvido pelo "chefe comum", ou seja, pelo Séc. de Segurança ou governador, de forma administrativa. Para piorar, alguns ainda entendem que o STF, num primeiro momento, não pode ser provocado porque os atos normativos em questão (BOs e TCs da PM) são tidos como secundários e a jurisprudência caminha no sentido de que só podem ser questionados perante aquele órgão atos normativos primários, que violem diretamente a constituição.

A polícia militar, tal como a polícia civil, não está dando conta de suas atribuições em razão da famosa falta de efetivo, quanto mais se abraçar a função de outra que, diga-se de passagem, também não exerce a sua satisfatoriamente. Quantos policiais terão que se recolher aos quartéis para dar andamento em toda papelada? A população clama por segurança e deseja ver as viaturas nas ruas. A PM precisa estar nas ruas para dar segurança (e não SENSAÇÃO de segurança) ao cidadão contribuinte. De igual maneira, a polícia civil precisa dar respostas para os crimes noticiados nos registros de ocorrência, pois em muitos casos o cidadão comunica o crime e nada é feito.

Enquanto isso a briga continua e quem paga o preço é o cidadão que não tem nada a ver. Se o objetivo da implementação do SADE, na teoria, foi melhorar o atendimento, na prática, vai piorar. Esperamos que o cidadão não seja jogado de um lado para outro para obter informação de seu boletim de ocorrência. Vamos esperar para ver quem está com a razão.

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Notas
1.A Polícia Militar do Estado de São Paulo até pouco tempo estava "autorizada" a formalizar o TC A Res. N. 233, de 09 de setembro de 2009, da SSP, publicada em 11/09/11, estabeleceu, corretamente, que somente delegados de polícia podem formalizar o referido procedimento, eis que tal função é privativa da polícia judiciária (PF ou PC).
2.NEVES, Antonio Marcio Campos, FAVERI, Fernando de. A inconstitucionalidade da lavratura "conveniente" de Termo Circunstanciado por parte da Polícia Militar no Estado de Santa Catarina.Disponível em: . Acesso em 27 de julho de 2011.
3.LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 3.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.
4.Vale lembrar que a equiparação salarial no serviço público é vedada pela Constituição (art. 37, inc. XIII).
5.Exceção aos casos de homicídio contra civis, a exemplo do recente caso JUAN no Rio de Janeiro, pois nesse caso, o juízo competente é o Tribunal do Júri e não a justiça militar, nos termos do artigo 125, §4º, CF.
6.GOMES, Luiz Flávio. Brasil é condenado novamente pela CIDH: Caso Escher (Violação à privacidade) (PARTE I). Disponível em: . Acesso em 26 de julho de 2011.
7.A CIDH obrigou ainda que o Estado do Paraná publicasse em seu site a sentença do Caso Escher. Disponível em: e . Acesso em 27de julho de 2011.


Fonte:JusNavigandi

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