Jabuticaba policial


Por Túlio Vianna 
O Brasil tem um modelo de polícia sem equivalentes em nenhum país da Europa ou da América. A polícia brasileira, ao contrário da maioria absoluta das polícias do mundo, é dividida em duas polícias de ciclo parcial: uma militar, que só realiza o policiamento ostensivo e outra civil, que somente investiga. Algo tão esdrúxulo quanto dividir a seleção brasileira de futebol em duas equipes: uma que somente defende e outra que só ataca e dar a cada uma delas técnicos e treinamentos distintos para reuni-las eventualmente apenas em partidas oficiais. Uma receita certa para a ineficiência.
Em muitos países da Europa há gendarmarias, que são polícias com treinamento e estrutura militar, mas fora esta característica comum, elas em nada se assemelham à polícia militar brasileira. As gendarmarias européias possuem atribuições tanto de policiamento ostensivo quanto investigativo e sua atuação restringe-se, na maioria das vezes, ao policiamento de zonas rurais e pequenos centros urbanos. Nas grandes cidades européias o policiamento é realizado por corporações exclusivamente civis. Em outras grandes potências mundiais simplesmente não existe uma polícia militar. Nos EUA e na Inglaterra, por exemplo, as polícias são cem por cento civis e o treinamento militar é restrito às forças armadas.
O militarismo nas corporações policiais é um grave equívoco, pois concebe a polícia como uma espécie de exército adaptado para garantir a segurança interna. Na guerra, é a disciplina militar, focada na obediência e na hierarquia, que permite um exército se manter coeso 24h por dia, 7 dias por semana e disposto a enfrentar os graves riscos de morte. Os policiais, porém, assim como quaisquer outros trabalhadores voltam para suas casas todos os dias depois do expediente, não criando riscos de rebeliões semelhantes aos que ocorrem em guerras. A disciplina militar nas polícias é desnecessária e excessiva, criando nos policiais uma cultura de rigidez e violência inadequadas a um regime democrático.
O treinamento militar é baseado em uma série de rituais de violência física e simbólica que procuram disciplinar os recrutas a obedecerem a seus superirores hierárquicos a todo custo. O foco do treinamento militar é introjetar nos recrutas como valor primordial o respeito à autoridade dos superiores hierárquicos, quando o foco de qualquer treinamento policial democrático deveria ser a introjeção do respeito à autoridade da lei e do Poder Judiciário.
Um policial que sofreu agressões e humilhações por parte de seus superiores desde que ingressou na instituição tenderá quase que inevitavelmente a transferir para os suspeitos da prática de crimes as violências físicas e simbólicas que sofreu, muitas vezes com maior intensidade. Engana-se quem acredita que o soldado é a base da pirâmide militar. A base da pirâmide militar é o cidadão suspeito da prática de crimes, mormente se ele for pobre e negro, pois será ele que sofrerá toda a sorte de abusos que o soldado sofreu de seus superiores e não terá poderes para repassá-los a ninguém.
Treine a polícia de forma violenta e ela será violenta. De nada adianta inserir disciplinas de Direitos Humanos na grade curricular das academias de polícias, se elas são ministradas como um requisito burocrático de conclusão de curso e completamente isolada do contexto não só das outras disciplinas, mas principalmente do cotidiano do policial na própria instituição.
Há quem defenda a militarização como um instrumento necessário ao controle da corrupção policial, em virtude do maior controle hierárquico. Nada mais ingênuo. Na prática, o que se vê é que a militarização não impede a corrupção, mas apenas a concentra nas mãos de alguns oficiais, já que seus subordinados dificilmente têm condições reais de denunciá-la sem sofrerem graves prejuízos. O problema da corrupção e de outros desvios policiais precisa ser enfrentado por meio do controle externo da polícia, em moldes semelhantes aos que se realiza hoje no Poder Judiciário pelo CNJ. A militarização da polícia brasileira já deu provas cabais de sua impotência no combate à corrupção.
É preciso que a sociedade brasileira conscientize-se da importância da unificação e da desmilitarização das polícias estaduais brasileiras. Ainda circulam muitos tabus e informações falsas sobre o tema e é preciso desmistificá-los. Desmilitarizar não é desarmar a polícia, pois a polícia norte-americana é provavelmente a mais bem armada do mundo e é 100% civil. Desmilitarizar é afastar o ranço autoritário da nossa polícia e democratizá-la, garantindo os direitos dos próprios policiais, que hoje lhe são negados pelo militarismo, e exigindo deles em contrapartida o respeito inexorável às leis e a todo e qualquer cidadão, seja ele suspeito ou não da prática de crimes.
PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO DE 2/2/2014

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