A Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco pediu, na tarde desta sexta-feira (14), que um inquérito civil público fosse instaurado pelo Ministério Público (MPPE) para apurar violações da Secretaria de Defesa Social, através da Polícia Militar, que impedem que os ensaios dos grupos ultrapassem das 2h da madrugada, em cidades do interior do estado. A solicitação foi feita após audiência pública, realizada no Recife , na sede do MPPE.
De acordo com Liana Cirne Lins, professora de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do grupo Direitos Urbanos, a PM não tem respaldo legal para fazer isso. "Os ensaios não se enquadram na Lei estadual 14.133/2010, pois ela regula apenas eventos com mais de 1.000 espectadores, e os encontros de maracatu não chegam nem a ter 400 pessoas. Também não podem ser fiscalizados pela Lei do Silêncio, já que se tratam de uma expressão cultural", disse Liane. Segundo a lei mencionada por ela, a polícia pode limitar a duração de grandes eventos e estava usando-a para encerrar as atividades de maracatus às 2h.
G1 entrou em contato com a Secretaria de Defesa Social, que afirmou, através da assessoria de imprensa, que o assunto deveria ser tratado diretamente com a Polícia Militar. A PM não respondeu as acusações até a publicação desta reportagem.
Processo demorado 
Estavam presentes à audiência pública representantes das promotorias de Justiça da Cidadania para Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e de Justiça do Meio Ambiente e do Patrimônio Histórico da Capital. O coordenador do Centro de Apoio Operacional da Cidadania, promotor Marco Aurélio Farias, disse que, por se tratar de algo que acontece em várias cidades, poderá ser demorado, já que cada promotoria terá que abrir o seu inquérito. "Após as investigações, se forem confirmadas as violações, o Ministério Público poderá fazer recomendações para que aconteça uma restauração da prática dessa manifestação social."
"É como se a polícia entrasse aos 30 minutos do primeiro tempo de um jogo de futebol e mandasse terminar tudo. Não existe isso, por que estão fazendo isso com a gente?", comparou Liana. "Estamos falando aqui de um costume de descendentes de negros e índios. Acho muito importante que as pessoas entendam que maracatu é mais que uma festa, é um empreendimento, pois gera economia na vida dessas pessoas", pontuou o cantor, compositor e músico pernambucano Siba.
"Não vamos aceitar esse abuso. Não abrimos mão de nos apresentarmos até o amanhecer do dia. Isso é parte da tradição e está dentro do código de honra entre os maracatuzeiros. Se um maracatu acaba antes do sol raiar, parece que os mestres não foram bons o suficiente para continuar com a disputa até a manhã", continuou Siba.
Preconceito 
Para os maracatuzeiros presentes na audiência pública desta sexta, a PM exige que as sambadas acabem nessa hora por causa do preconceito. "Eles dizem que fazem isso para nos proteger, mas nunca teve um crime em um terreiro. Tem que se ver que nunca teve nada de violência na cultura do maracatu de baque solto. Quem participa normalmente trabalhou a semana toda, está cansado, e só quer brincar", afirmou o presidente da associação, Manoel Salustiano. "O que é mais perigoso: a gente ficar em nosso canto até às 5h da manhã e ir para casa tranquilo ou sair às 2h e ter que andar até o engenho no qual trabalhamos durante a madrugada?"
Manoelzinho Salustiano, maracatuzeiro
"Nossa cultura gera emprego, tira muitos jovens da violência. Tudo que fazemos vem do nosso próprio bolso, por isso só nos encontramos poucas vezes pelo ano, umas três ou quatro. Agora querem nos limitar mais ainda? Não vamos permitir que aconteça aqui o que aconteceu com a cultura indígena, que virou lenda", disse o maracatuzeiro Maciel Salú.
Entenda o caso 
No dia 2 de fevereiro, uma audiência pública convocada pela promotora de Justiça de Nazaré da Mata , Maria José Mendonça, derrubou o horário-limite para as sambadas no municipio. Representantes das agremiações estiveram presentes e relataram que a Polícia Militar estava restringindo, sem embasamento legal, o término das apresentações para às 2h.
Na ocasião, o presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Severino Cavalcanti, afirmou que o acordo firmado na audiência serviria de base para outras cidades. "Os ensaios não terão limitação de horário. O que aconteceu em Nazaré da Mata foi uma questão local, não configura medida proposta pelo [poder] Executivo. Não há, nunca houve orientação do Governo do Estado neste sentido. Vamos reforçar essa diretriz de livre manifestação", disse.
Mesmo após essa primeira audiência em Nazaré, os grupos de maracatu de outras cidades continuaram sendo obrigados a encerrar as sambadas mais cedo. No documento entregue nesta sexta ao MPPE, grupos de 23 cidades pernambucanas afirmaram ainda estarem sendo abordados pela PM. Segundo a Associação, esta medida viola o direito de livre manifestação artística e causa danos ao patrimônio cultural de Pernambuco.