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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Michel Misse: “A polícia brasileira é construída para o combate”


A 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz um dado que assusta – em cinco anos, as polícias brasileiras mataram mais que as polícias americanas em 30. O sociólogo Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em segurança pública defende que, para mudar esses dados, é preciso desmilitarizar a polícia

RAFAEL CISCATI
11/11/2014 18h11 - Atualizado em 11/11/2014 18h43
Michel Misse, da Federal do Rio de Janeiro: "Para a polícia, o criminoso é um inimigo a ser eliminado, e não um cidadão " (Foto: Reprodução)
Em cinco anos, os policiais brasileiros mataram 11.197 pessoas. Mais do que os policiais americanos mataram nos últimos 30 anos. O número equivale a seis pessoas mortas por dia. Esses dados foram apresentados na 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O documento, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado integralmente nesta terça-feira (11), traz informações sobre a violência no Brasil ao longo de 2013.

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No ano passado, mais de 50 mil pessoas foram vítimas de homicídio doloso (quando há intenção de matar) no país – um acréscimo de 1,1% em relação ao ano anterior.  O agravamento da insegurança e a violência policial têm raízes parecidas: segundo o sociólogo Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em segurança pública, as polícias brasileiras não foram concebidas para conduzir investigações. Incapaz de solucionar os casos de homicídio, o poder público não consegue criar políticas criminais que reduzam o problema. “Há uma concepção de combate, de punição. Não uma concepção de investigação”, afirma Misse.

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Essa postura policial prejudica também os agentes. No último ano, 369 policiais foram mortos em serviço. Em 2009, foram 186. A letalidade da polícia gera reação semelhante dos bandidos: “No Brasil, há a suspeita, por parte dos criminosos, de que eles podem morrer caso se entreguem”. Por isso, preferem o confronto. Segundo Misse, para melhorar a segurança, é importante modernizar a polícia. E despi-la de seus aspectos militares.

ÉPOCA – A polícia brasileira, em cinco anos, matou mais que a americana em 30. Qual a explicação para essa taxa de letalidade?

Michel Misse – A polícia brasileira é uma polícia construída para o combate. Há uma concepção de combate, de punição. Não uma concepção de investigação. A Polícia Militar é a principal, embora não a única, responsável por esses dados. Ela não fazia esse tipo de trabalho, até o regime militar – foi quando virou uma força de policiamento ostensivo. O problema é que ela carregou seus aspectos militares, inadequados para o trabalho de investigação, que deveria ser próprio da polícia. Houve muitas mudanças desde então, mas a cultura policial continua a ser agressiva – resiste a concepção de que o criminoso é um inimigo a ser eliminado, e não um cidadão que rompeu com a lei e deve responder da maneira adequada.
ÉPOCA – O número de agentes mortos em serviço também cresce desde 2009. Há relação entre esses dois problemas?
Misse –
 Sim. Essa concepção de combate também faz vítimas dentro da própria polícia. O número de policiais mortos é altíssimo e sem paralelos em outros países. Mudar isso exige uma reformulação profunda da concepção de polícia.
ÉPOCA – Que mudanças devem ocorrer para que se altere essa concepção de polícia?
Misse – 
O uso da força letal deveria ser o último recurso. Ao fazer isso, o policial sinaliza ao criminoso que suas chances de morrer são baixas. Sinaliza que é mais vantajoso se entregar que responder a tiros. No Brasil, há a suspeita, por parte dos criminosos, de que eles podem morrer caso se entreguem. Essa crença faz algum sentido: vem de uma cultura antiga, de tortura em delegacias, algo que existia antigamente e que, em alguns casos, ocorre ainda hoje.
Por isso, os criminosos reagem. Os policiais, na forma da lei, se defendem. Parte das mortes que resultam desses confrontos são legais, são reações legítimas dos policiais. Mas raramente há provas dessa legitimidade. Não há investigação – a política é a de que, se o policial diz que matou em confronto, a instituição deve acreditar nele.  Essa está longe de ser uma postura adequada. É preciso haver ampla investigação das circunstâncias da morte, algo que não acontece no Brasil. Em meio às mortes em confronto, há casos de execução de que nunca saberemos, porque não foram investigados.
ÉPOCA – Há outros países na América Latina com problemas semelhantes aos brasileiros?
Misse –
 Não há nada comparável. Nem na Colômbia das Farcs. Talvez no México. O México vive hoje mergulhado em uma situação de quase guerra civil, em constante conflito entre os cartéis de droga. Os dados são parecidos em alguns países da América Central. Mas o Brasil não vive situação comparável a esses países. Não vivemos uma situação de pré-guerra civil. A situação brasileira, por isso, é muito peculiar. Muito estranha.
ÉPOCA – Um dado positivo apontado no relatório diz repeito ao Rio de Janeiro: o estado era responsável por mais das metades das mortes provocadas por policiais no Brasil em 2009. O número caiu pela metade em 2013. Como isso aconteceu?
Misse – Eu vejo isso como resultado das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Antes, a polícia invadia as favelas semanalmente, produzindo mortes. A medida em que a polícia se instala, essa letalidade cai. Caiu também a taxa de homicídios. Mesmo assim, a letalidade policial, somente no Rio, ainda é maior que a dos Estados Unidos. E é preciso que se investigue o aumento do número de desaparecimentos desde a instalação das UPPs. Esses são problemas que só podem ser resolvidos com transparência. A Universidade e demais pesquisadores precisam ter acesso a dados, para produzir análises e propor soluções.
ÉPOCA – O relatório propõe uma meta de redução dos homicídios totais em quase 70% até 2030. Como chegar a esse número?
Misse – É preciso esclarecer os homicídios, para estabelecer uma política criminal que permita essa redução. No Rio de Janeiro dos anos 1950, a taxa de homicídios era  baixa, comparável a de Nova York atualmente (5 homicídios a cada 100 habitantes). Mesmo assim, a polícia não conseguia esclarecer nem metade dos casos. Falta que as instituições se modernizem e sejam mais bem integradas. Não só a polícia. O Sistema Judiciário como um todo e também o Ministério Público. Na estrutura atual, falta integração. Os órgãos funcionam como arquipélagos, não se comunicam suficientemente. E é preciso modernizar também as penitenciárias. O crime organizado no Brasil surge no lugar onde as penas são cumpridas.

Fonte: Revista ÉPOCA

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